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Todo profissional ou estudante de direito, algum dia, já ouviu a famosa afirmação de que, após vinte e quatro horas do fato, o flagrante “baixou”. Tal assertiva, bastante comum nos meios de comunicação e na linguagem do leigo, pontua que nada se pode fazer em relação ao agente depois de decorridas vinte e quatro horas do delito, já que o estado de flagrância não mais existiria nessa hipótese, sendo vedada sua prisão.

O ponto aventado acima ganhou destaque principalmente após um caso recente, ocorrido esta semana, em que uma quadrilha brasileira teria roubado uma empresa de segurança paraguaia e se refugiado em solo brasileiro. Parte dos supostos integrantes dessa organização foram presos por policiais brasileiros após quase dois dias do fato.

Muitos se perguntaram se seria possível a prisão em flagrante desses sujeitos se o crime aconteceu por volta de segunda-feira, na madrugada, e as prisões se efetivaram somente no fim da tarde de terça-feira, ultrapassando o prazo comumente adotado.

O questionamento que se faz, e que tentaremos tratar de maneira didática nesta coluna, é se a “baixa” do flagrante efetivamente se dá dessa maneira, com o simples decurso de vinte e quatro horas. Vejamos.

Prisão em flagrante e noção de flagrante

O Código de Processo Penal prevê a possibilidade da prisão em flagrante em seu artigo 302, pelo qual descreve três hipóteses em que é possível se vislumbrar o estado de flagrância do sujeito.

A noção de flagrante, como preceituado por CARNELUTTI (1950, p. 77), está relacionada com a ideia de “chama, fogo” (do latim flagrare que significa queimar).

Para o professor italiano, o estado de flagrância seria como uma chama que demonstra a certeza da combustão, da queima, todo mundo que vê uma chama sabe que seguramente alguma coisa arde.

O delito, pois, estaria visível a todos, pois onde há fumaça, há fogo.

E é justamente a visibilidade do delito que permite a qualquer um do povo – exatamente, qualquer um, inclusive quem não é policial – efetuar a prisão do agente que pratica ou acabou de praticar a conduta, porquanto a aparência delitiva é perceptível de plano, estando evidenciado o fumus comissi delicti da ação.

A norma, como se depreende, preocupa-se em permitir que o agente esteja à disposição da autoridade responsável pela investigação assim que seja percebida a prática, em tese, da conduta criminosa, evitando-se a continuidade desta e o perecimento do corpo de delito.

No dizer de MIRABETE (1995, p. 366):

“Em sentido jurídico, o flagrante é uma qualidade do delito, é o delito que está sendo cometido, praticado, é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerado a ‘certeza visual do crime’. Assim, a possibilidade de se prender alguém em flagrante delito é um sistema de autodefesa da sociedade, derivada da necessidade social de fazer cessar a prática criminosa e a perturbação da ordem jurídica, tendo também o sentido de salutar providência acautelatória da prova da materialidade do fato e da respectiva autoria”.

Prisão em flagrante e espécies de flagrante

A norma processual penal prevê, no já citado artigo 302, três espécies de flagrante: a) próprio, previsto nos incisos I e II; b) impróprio, estampado no inciso III; e c) ficto ou presumido, nos termos do inciso IV.

Para fins desta coluna, no escopo de responder ao questionamento inicial, acerca das vinte e quatro horas para a “baixa”, abordaremos o flagrante impróprio por último, vez que é essa espécie de flagrante justamente aquela que desmistifica a crendice popular.

Pois bem.

O flagrante próprio, como previsto nos incisos I e II do artigo 302, é o clássico, se assim podemos dizer. Sua configuração se dá quando o agente está cometendo ou acabou de cometer a infração penal – nesse caso quando o tempo que separa a consumação da infração e o encontro do agente é muito curto.

Nessas hipóteses, sobretudo a do inciso I, a efetivação do ato de prisão, de constrição da liberdade, do agente pode ser a medida eficaz em evitar a própria consumação do delito, pois o agente é surpreendido quando está percorrendo as etapas do iter criminis (caminho do crime).

O flagrante ficto (não confundir com flagrante preparado, que é ilegal) se configura quando não se pode afirmar categoricamente que o agente foi o autor da infração penal, mas o mesmo foi encontrado logo após a prática do crime portando materiais ou objetos do crime.

É, digamos, uma modalidade de flagrante mais frágil do que a anterior, porquanto o crime não está “ardendo” diante dos olhos. O que se faz, em verdade, é uma presunção a partir dos elementos encontrados em poder do preso.

E veja-se que encontrar, como afirma AURY LOPES JR. (2013, p. 811), deve decorrer de uma relação causal, não casual. Ou seja, o “encontro” deve partir de atos posteriores à constatação do delito no sentido de perseguir aquele que supostamente perpetrou a ação criminosa.

O ato de encontrar alguém sem qualquer relação prévia com o delito, ainda que mantenha o crime configurado, não permite concluir pelo estado de flagrância que conduza à prisão imediata.

Não é o caso de flagrante, por exemplo, quando o agente subtrai um telefone celular pela manhã e, durante a tarde, é abordado pela polícia numa ronda rotineira, sem qualquer relação a algum chamado da vítima do crime, e é visto com a posse do aparelho.

Mesmo que exista um registro da ocorrência na polícia, a equipe de patrulha não poderá justificar a prisão em flagrante sob a forma ficta, já que o encontro do agente não decorreu de uma relação prévia com o delito, mas de puro acaso.

Por fim temos a figura do flagrante impróprio. Segundo previsto no artigo 302, inciso III, do CPP, é possível proceder à prisão em flagrante quando o agente é perseguido logo após a prática do crime. E é aqui, talvez, o principal ponto de confusão acerca da “baixa” do flagrante em vinte e quatro horas.

Como vimos, as espécies de flagrante próprio e ficto até permitem entender que o tempo de vinte e quatro horas seria suficiente para afastar o estado de flagrância. Ambas as modalidades exigem, para sua configuração, lapso temporal mais curto, às vezes simultâneo como é o caso do flagrante próprio, trazido pelo inciso I do artigo 302 do CPP.

Mas o tempo de vinte e quatro horas não é critério para se definir ou não a existência do estado de flagrância e a prova disso está exatamente no caso do flagrante impróprio.

Retornando, o flagrante impróprio é aquele no qual o agente é perseguido logo após a prática delitiva. Com isso, a norma quer dizer que é possível, sim, um estado de flagrância perdurar por mais de um dia, já que a norma não diz, em momento algum, quanto tempo poderá durar a perseguição, mas apenas que esta deve ter início logo após o delito.

A perseguição, pois, pode ultrapassar as vinte e quatro horas, inclusive persistir por dias, até a efetiva prisão dos suspeitos. O requisito legal exige somente que o ato persecutório tenha início logo após o delito, querendo-se, dizer, assim, que não se configura o flagrante nos casos em que, por exemplo, a polícia chega uma hora depois da infração e aí inicia a persecução.

“Logo após”, como descrito na lei, “é um pequeno intervalo, um lapso exíguo entre a prática do crime e o início da perseguição” (LOPES JR, 2013, p 810).

No caso, por exemplo, do assalto no Paraguai, é possível notar em diversos vídeos disponíveis na internet, que os suspeitos são surpreendidos pela polícia assim que buscam fugir do local do crime, inclusive com troca de tiros.

Os policiais paraguaios, como também os brasileiros, iniciaram a perseguição dos membros do grupo imediatamente após a fuga deles da empresa de segurança, sendo que as autoridade se mantiveram no “encalço” dos sujeitos mesmo passados mais de um dia e meio do caso.

Com efeito, é possível, sim, nesse caso, vislumbrar uma situação de flagrância.

E note-se que a perseguição poderia durar até o domingo, que ainda assim, falaríamos de flagrante, pois não importa, para fins de configuração do estado de flagrância o período de vinte e quatro horas. O que a lei impõe é tão só o início da perseguição, que deve ser quase que imediata.

Desta feita, não se pode dar razão a quem diz que o flagrante será “baixado” após vinte e quatro horas dos fatos. O estado de flagrância pode variar conforme a modalidade constatada e, em casos de flagrante impróprio, poderá ultrapassar dias, não sendo, portanto, possível fixar um lapso temporal máximo de sua duração.

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REFERÊNCIAS

CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal. Buenos Aires: Bosch, 1950. Tomo IV.

LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 4. Ed. São Paulo: Atlas.

Fonte: Canal Ciências Criminais