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É máxima do princípio da culpabilidade que para cada crime praticado, cada agente tem o direito de que o juiz proceda ao que chamamos de individualização da pena. Pena esta que, segundo Montesquieu, deve derivar de absoluta necessidade.

Nesta fase do processo penal, onde o/a agente já se encontra condenado(a), deve-se levar em consideração não apenas os elementos objetivos, relacionados à conduta delitiva, mas também os elementos pessoais, relacionados a/ao próprio(a) agente.

Inúmeras críticas são tecidas a esta característica pessoal da individualização da pena, a mais recorrente fala em um direito penal do autor, instituição conhecida e veementemente repudiada por aqueles (as) estudiosos (as) do Direito.

Tal crítica, no entanto, não parece prosperar. É que a individualização da pena guarda estrita relação com a expressão social do sujeito. Além disso, fala-se em direito penal do autor no âmbito da imputação e não na fixação da pena.

A individualização da pena, portanto, cuida de encontrar uma pena justa a ser aplicada ao/a agente. É o art. 68 do Código Penal que regulamenta essa verdadeira “busca”, ao dispor:

Art. 68 – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

Interessa a nós, neste primeiro momento, fazer breves apontamentos a respeito do art. 59 do Código Penal, que trata das chamadas circunstâncias judiciais, mais especificamente, da compreensão que se tem do comportamento da vítima, para a fixação da pena-base. Importante frisar que, o objetivo deste texto é tão somente incitar o debate, haja vista se tratar de tema absolutamente complexo e delicado.

Pois bem.

O artigo 59 do Código Penal brasileiro determina:

Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas.

O comportamento da vítima leva em consideração atitudes desta que contribuem, de algum modo, para a ocorrência do fato e, se assim for, irão favorecer o condenado na fixação da pena. Cabe ressaltar que, para provocar ainda mais a discussão, há intensa divergência na doutrina sobre a possibilidade desta circunstância ser usada em desfavor ao réu.

Esta circunstância judicial pode parecer inofensiva, mas não é. Explicamos. A inserção do comportamento da vítima como fator de influência no estabelecimento da pena apresenta delicada face, posto que as reações humanas não são padronizadas, previsíveis e absolutas: elas variam de acordo não só com as condições específicas do crime mas com a forma própria com que o indivíduo escolhe demonstrar sua reação ao ocorrido.

Essa questão torna-se ainda mais complexa quando nos vemos frente a um crime de estupro, por exemplo, que distante da realidade de um crime contra o patrimônio ou contra a vida, atenta contra a própria condição da mulher.

A violência de gênero não é como as outras formas de violência: ela se constrói de forma institucionalizada sobre a mulher; enquanto que crimes financeiros atentam o patrimônio independente da condição daquele que o possui.

Além desta particularidade do crime de estupro, precisamos ter em mente a forma com que a vítima deste crime é tratada durante todo o processo: muitas vezes, ela é recebida por profissionais despreparados, seja na delegacia no momento do boletim de ocorrência, onde pode ser desencorajada a dar início a uma denúncia; seja durante o exame de corpo de delito no hospital, momento no qual a condição física da mulher é novamente violada para colher os resquícios frutos da violência física sofrida.

Além disso, questionamentos de cunho moralista parecem a todo tempo procurar deslegitimar o crime, como se o vestuário ou a não reação imediata da mulher naquele cenário justificassem seu estupro.

Todas essas nuances se encaixam para compor a forma com que a pessoa reagirá ao crime, ou seja: não é apenas o crime em si que irá definir o comportamento da vítima, mas também toda a influência externa que recai sobre a mulher durante o processo criminal.

A vítima do crime de estupro não é como a vítima de qualquer outro processo penal: desde a fase de investigação até o momento da sentença ela é perseguida como se a existência do crime estivesse presa a ela mesma, intrínseca a sua condição.

A todo momento sua postura frente ao ocorrido é questionada, como se o seu comportamento pudesse justificar o crime em algum nível ou mesmo eximir a culpa do acusado. Por esse motivo, devemos ter muita cautela quando tratamos da agravante ou atenuante da pena com base no comportamento da vítima de estupro.

Trata-se de inserir a mulher, como vítima, em um sistema que a oprime cotidianamente e o faz de maneira ainda mais forte quando ela recorre ao sistema penal para buscar a justiça.

Apoiar a dosimetria da pena em um fator tão subjetivo quanto o comportamento da vítima já é uma questão frágil; apoiá-la sobre a própria condição da mulher vítima de um crime torna essa questão insustentável.

A jurisprudência, neste sentido, costuma considerar como circunstância judicial favorável ao réu, o comportamento da vítima que, ao deixar o carro aberto, com a chave na ignição, em local conhecido como perigoso, tem seu veículo furtado.

Esse exemplo serve de fundamento para defesa do “comportamento da vítima” nos casos de estupro, por exemplo. Entretanto, estes mesmos/as defensores/as, não levam em consideração as singularidades e diferenças gritantes entre os crimes contra o patrimônio e os crimes sexuais.

Discursos como estes, perigosamente, podem legitimar assédios devido ao cumprimento da vestimenta.

O tema é polêmico e delicado, mas é necessário o debate.

 

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Escrito por: Matheus Gugelmin

Fonte: Canal Ciências Criminais