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Uma das maiores dificuldades que temos é conseguir harmonizar as leis com a realidade. A legislação, muitas vezes, está distante do que vivemos, fazendo com que o seu texto não represente o que acontece na prática. Inclusive, esse desencontro (entre a legislação e a realidade) pode ser verificado no caso das prisões.

Segundo o Código de Processo Penal, em seu artigo 306, quando uma pessoa é presa, sua prisão deve ser comunicada imediatamente ao juiz competente, devendo, para tanto, ser encaminhado o Auto de Prisão em Flagrante Delito no prazo de até 24h (vinte e quatro horas).

Obviamente, o objetivo do legislador era fazer com que todas as prisões não ficassem sem a apreciação imediata do Judiciário, no que se refere a sua legalidade.

Mas o que está escrito na lei não é o que ocorria na prática.

A pessoa era presa em flagrante, levada a uma delegacia, interrogada, assim como ouvidas as testemunhas, e, independentemente do delegado prender/arbitrar fiança/liberar o preso, o magistrado somente tinga efetivo conhecimento dessa prisão dias depois da sua ocorrência.

Aí vem a pergunta: mas, se foi dito aqui que o prazo determinado pela lei para a comunicação da prisão é de 24h, como, então, o juiz só tomava efetivo conhecimento dias depois?

Simples. A “comunicação em 24h”, do Código de Processo Penal, na prática, equivalia a protocolizar o Auto de Prisão em Flagrante no protocolo geral do Fórum.

Quanto tempo demora entre esse protocolo e a conclusão dos autos ao juiz (levando em consideração que nesse período os autos serão distribuídos a uma das Varas Criminais, remetidos a essa Vara, recebidos, autuados, registrados, remetidos e, finalmente, recebidos no Gabinete)?

Toda essa burocracia faz com que o magistrado só viesse tomar efetiva ciência da prisão, adotando uma das providências estabelecidas no artigo 310 do CPP (relaxar a prisão, converter em preventiva ou conceder liberdade provisória), em um prazo muito superior às 24h legais.

Quantas prisões indevidas eram mantidas durante esse burocrático tempo até o juiz tomar ciência da prisão e adotar uma providência?

Desse questionamento surgiu a necessidade de mudar. Não havia mais espaço para considerar essa comunicação como sendo apenas a entrega de um papel, contendo as informações sobre a prisão de uma pessoa. Veio a necessidade de apresentar o preso ao juiz no prazo de até 24h.

Daí entra a “humanização da Justiça”, fazendo com que os presos sejam “vistos” (como sabemos, muitos presos somente terão contato com o Judiciário meses ou anos após a prisão).

Assim, com a audiência de custódia, quando for presa, a pessoa, após ser levada para a delegacia, formalizando o auto de prisão em flagrante, será encaminhada junto com os autos ao juiz, para que, assim, frente a frente com o preso (com a realidade), esse juiz decida sobre a homologação da prisão (se legal) e a medida a ser aplicada àquele indivíduo (seja prisão, medidas cautelares diversas da prisão ou liberdade).

Ao contrário do que se possa imaginar, essa ideia de apresentação do preso ao juiz não é nenhuma inovação em nosso ordenamento jurídico. O Código de Processo Penal, em seu artigo 656, estabelece que “recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar”.

Quanto ao projeto “audiência de custódia”, deve ser ressaltado que o mesmo foi lançado primeiro em uma parceria entre o CNJ e o Tribunal de Justiça de São Paulo. Depois foi a vez do Tribunal de Justiça do Espírito Santo seguir os passos do Tribunal paulista, até ser adotado em todo o país.

Essa audiência de custódia não tem o objetivo de formar convencimento sobre o mérito, mas sobre a necessidade/adequação/razoabilidade/proporcionalidade da medida a ser aplicada ao caso concreto (restritiva de direitos/privativa de liberdade).

Vejo, inclusive, uma maior possibilidade de individualizar a medida a ser adotada, tornando-a mais justa e efetiva, como no caso da fiança, pois o magistrado terá condições de aferir a possibilidade do preso cumprir com o que decidido.

Ademais, ao olhar para o preso, logo após a prisão, o magistrado terá maior possibilidade de verificar qual é a sua realidade, buscando a medida legal que será mais efetiva e necessária ao caso concreto. A situação do preso será analisada e verificada caso a caso, de forma individualizada, proporcional à sua capacidade de cumprimento.

Destarte, a audiência de custódia visa dar maior efetividade ao que estabelecido no artigo 310 do CPP, o qual determina quais as providências devem ser adotadas quando o juiz “tomar ciência” da prisão.

Sem falar que a implementação dessa audiência visa dar cumprimento a tratados internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, mais conhecido como Pacto de San Jose da Costa Rica.

Como já dito, no modelo anterior à audiência de custódia o magistrado somente tinha essa “ciência” dias após a ocorrência da prisão.

Assim, essa medida, ao meu ver, humaniza um pouco mais o gelado coração da Justiça, fazendo que naquela gélida massa de pedra corra um pouco de “sangue”.

Ver, ouvir e sentir, com certeza, possibilita uma decisão mais embasada do que a simples leitura dos autos, pois colocaremos seres humanos frente a frente uns com os outros, os quais, apesar da flagrante diferença de classes sociais, possuem mais semelhanças, pela condição de pessoa, do que diferenças.

Com toda certeza esbarramos em obstáculos com esse projeto, os quais surgem muitas vezes dessa diferença social existente entre o julgador e o julgado, como o preconceito e a manutenção da segregação apenas dos menos favorecidos.

Todavia, vejo muito mais benefícios do que prejuízos, haja vista que as decisões poderão ser proferidas conforme a realidade de cada um dos presos, caso a caso, aproximando LEI (por meio do JUDICIÁRIO) e SOCIEDADE.

Vejamos, então, algumas situações que são evitadas com a audiência de custódia:

  • Demora na efetiva ciência do juiz sobre a prisão;
  • Presos em decorrência de crime pequenos, primário, menor de 21 anos;
  • Fianças e outras medidas cautelares aplicadas de forma desproporcional;
  • Torturas/maus-tratos aos presos, causados pelos policiais;
  • depoimentos forjados.

É claro que essa medida não resolverá todos os problemas do Sistema, mas servirá para que a lei se aproxime da realidade, da necessidade e da sociedade, além de “humanizar” a Justiça, tornando-a mais justa.

 

Escrito por: Pedro Magalhães Ganem

Fonte: Canal Ciências Criminais