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Aconteceu comigo. Não faz muito tempo. Eu era estagiário num brilhante escritório de advocacia, composto por profissionais extremamente responsáveis e competentes.

Um cliente, investigado pela prática de suposta infração penal, havia sido intimado para comparecer numa determinada Delegacia de Polícia num pequeno Município do Estado do Rio Grande do Sul.

Como eu sempre fui do penal, fui convidado para acompanhar o ato. De terno, gravata, óculos de sol e cuia de mate na mão – naquela marra típica que só os estagiários sabem ter -, adentrei na Delegacia de Polícia, ao lado de uma grande advogada e do investigado.

Fomos incrivelmente bem atendidos pelos servidores. Não demorou muito tempo para o Delegado de Polícia aparecer e dizer: Oh! Os dois!? Ao que respondi, de imediato e com veemência: os dois!

Ora, pensei que ele estava fazendo referência aos dois membros do escritório de advocacia que estavam acompanhando o ato… Ledo engano!

Entramos numa pequena sala. Ao meu lado esquerdo estava sentado o suspeito e, ao lado dele, a advogada. Na sala, ainda, se encontrava uma atenciosa e educada servidora policial.

Depois de alguns instantes, o Delegado de Polícia apareceu e, sem cientificar o investigado de seus direitos constitucionais, passou a bradar que o caso era muito grave e que “deveriam abrir o bico”. (sic)

Logicamente, antes de mais nada, foi formulado o requerimento de prévio acesso aos autos do Inquérito Policial. Aliás, dos Inquéritos Policiais, haja vista que, malandramente, houve a ramificação de um só IP em diversos, com o claro objetivo de esconder documentos e depoimentos da defesa.

Não obstante, o Delegado de Polícia, sem garantir ainda o acesso ao (desfalcado, já que faltavam documentos e depoimentos) expediente investigativo e, muito menos, sem cientificar o investigado de seus direitos basilares, continuou a empregar o seu temerário método de investigação: olhou para o investigado e, pasmem, Senhoras e Senhores, para mim – o estagiário!!!! -, e disse: eu quero é saber se vocês vão falar; porque, vocês sabem, eu já pedi a prisão de vocês!

Pronto, pensei! Ser estagiário agora é crime! Direito Penal do Autor: os estagiários, além de serem escravizados e não valerem nada, são também os inimigos agora!

Não, caros leitores. Absurdamente o Delegado não sabia, não conhecia, não tinha noção de quem ele estava investigando. Ele me confundiu – o mísero e marrento estagiário (na época)! – com o outro investigado, que seria interrogado naquele fatídico dia também.

E detalhe: o outro investigado não apresentava nenhuma semelhança comigo. Sou alto e magro. Ele, por sua vez, era baixinho e gordinho.

Novamente pensei (em silêncio): imagina a qualidade da investigação se a autoridade policial não conhece sequer quem está investigando…

O verdadeiro investigado ali presente, apesar de toda essa confusão, estava em choque, assustado: o Delegado prometia a sua prisão acaso não fosse confirmado aquilo que a autoridade policial queria ouvir (e que não necessariamente corresponde à realidade).

Com o IP em mãos, mostrei ao investigado que a juíza já havia negado a sua prisão e que tudo não passava de blefe.

Agora, não é preciso continuar discorrendo muito sobre aquele fatídico dia para perceber a precariedade das investigações policiais no Brasil:

1. Investiga-se mesmo sem saber quem se está investigando;

2. Ameaçasse de prisão, quando esta já foi negada, para que o investigado, que não é conhecido, diga aquilo que a autoridade quer ouvir. Vale dizer: não existe a preocupação de escutar a versão do investigado, de analisar outras hipóteses, enfim, de esclarecer verdadeiramente o fato;

3. O tom da entrevista realizado pelo (s) Delegado (s), aos gritos, mediante argumentos de autoridade e blefes de prisão, é suscetível de sugestionar e de induzir qualquer pessoa a se incriminar, confessando o que não fez ou mais do que fez;

4. Este método de investigação é manifestamente temerário, afinal, não são raros os casos em que a autoridade policial costuma empregá-lo com vítimas ou testemunhas, induzindo-as a reconhecerem o investigado.

Dito de outro modo, não existe a preocupação de ouvir, de verdadeiramente escutar, as pessoas. A Autoridade Policial busca confirmar aquilo que ela deseja.

É o famoso primado das hipóteses sobre os fatos, tão denunciando por Aury LOPES JR. (2013): no Brasil, primeiro se decide para depois se investigar; quando, por óbvio, o procedimento deveria ser o inverso!

Não são poucas as vítimas e testemunhas que reconhecem um sujeito equivocadamente, não raras vezes porque a polícia apresentou a elas aquele célebre book fotográfico de velhos conhecidos do sistema policial, asseverando que eles são perigosos, que têm antecedentes e que só pode ter sido um deles – dos apresentados nas fotografias – o autor do delito.

Igualmente, costuma-se primeiro apresentar um book fotográfico de suspeitos e, depois, realizar o reconhecimento pessoal de alguns deles. E qual o problema disso?

Bem… o reconhecimento pessoal fica completamente contaminado, afinal, fora lançado sobre as vítimas e testemunhas um estereótipo, uma imagem, um padrão de delinquente, criado pela autoridade policial, de maneira que aquele que apresentar semelhanças com alguns dos suspeitos mostrados nas fotografias tende a ser reconhecido.

5. Se este método investigativo foi empreendido contra um suspeito acompanhado por uma advogada e por um estagiário, imaginem o que não acontece nas Delegacias de Polícia deste nosso grande país, principalmente quando os suspeitos não são acompanhados por advogados?

Moral da história: quantos “estagiários” não se encontram cumprindo pena indevidamente por aí? Afinal, são todos culpados. Por quê? Porque não confirmaram o que a autoridade gostaria de escutar…!

REFERÊNCIAS

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Escrito por: Guilherme Espíndola Kuhn
Fonte: Canal Ciências Criminais